quinta-feira, 28 de abril de 2011

“Filme de Amor” – E tudo que há de artista em Júlio Bressane




Tido como o principal representante do cinema marginal brasileiro e, se não, o único a se arriscar no cinema experimental no Brasil, Júlio Bressane evidencia essas características em seu 25º filme, “Filme de Amor”, realizado em 2004.

Filmado num curto tempo de dez dias e depois de quatro meses de ensaio, Bressane traz a fábula das Três Graças da mitologia sob uma visão particular, contemporânea e surreal. O erotismo e a linguagem poética aparecem como elo principal para o cineasta decorrer sobre as três figuras, o Prazer, o Amor e a Beleza.

É importante ressaltar aqui a origem da idéia para o filme. A partir da análise do crítico e historiador de arte, Aby Warburg, o diretor teve contato com a história da criação da Trindade (Três Graças) na chegada de Vênus à Terra.

Para a criação das cenas Bressane se baseou nas obras do artista Balthus, principalmente pelo erotismo e caráter sensual das figuras e cenas criadas pelo pintor. Na imagem criada pelo cineasta é visível as referências da bidimensionalidade da pintura e a tridimensionalidade da escultura, principalmente a escultura grega.

No filme as três figuras são representadas por duas mulheres (Hilda e Matilda) e um homem (Gaspar), numa espécie de fábula popular suburbana. Os personagens são pessoas comuns, de vidas desinteressantes e medíocres que vivem no subúrbio carioca.

Em um final de semana os três se encontram num apartamento, para uma espécie de celebração, de ritual em que se permitem transfigurar nas três divindades. Através da embriaguez, do erotismo, prazer sexual, do espiritismo e da poesia, a vida dos personagens sai do ambiente comum para entrar em contato com elementos sutis, como se um intervalo fosse estabelecido para que pudessem sair de si e habitar outras esferas do pensamento e comportamento humano.
O sexo é o elo entre os personagens que se deixam envolver pelas manifestações corporais e sensoriais proporcionadas pelos diálogos e ações. Ao mesmo tempo que é tratado de forma animalesca, como nos bacanais gregos, é também mostrado de forma lírica, poética, natural e sem esteriótipos.

A sinestesia presente em todo o filme é sentida pelo espectador que testemunha e participa dessa “orgia filosófica”. Como consequência o gozo é a síntese do tema. O gozo aparente no rosto, no esperma, nos símbolos e nas metáforas. O filme inteiro é repleto de simbologias com significados próprios do diretor.

Segundo Bressane, a paixão pelo cinema, o entusiasmo e o encontro são responsáveis pela parceria entre ele e o fotógrafo Walter Carvalho, que neste filme consegue abarcar toda sua genialidade e sensibilidade ao realizar uma fotografia rica de técnica e significado para compor um dos fatores mais atrativos do filme. A oscilação da imagem colorida e em preto e branco, muito bem trabalhadas no filme, coloca o espectador para visualizar uma história real e uma história contada que se encontram numa mesma situação.



Os três amigos que buscam o prazer fora do cotidiano contam com diálogos encharcados de poesia e textos de caráter literário-filosófico-artístico, além de declamarem falas de outros filmes do diretor, uma das características que dão ênfase para as impressões pessoais do mesmo.

Por mais atraente, encantador e inovador que seja o resultado de uma criação de
Bressane, o seu processo e seus modos de operar o cinema é que chamam mais atenção.
No caso de “Filme de Amor” são inúmeras as qualidades originais ao cinema brasileiro. Em Bressane o cinema se apresenta de uma forma viva, orgânica, em que o cineasta abstrai elementos em função de uma imaterialidade do tema. Como diz Walter Carvalho, o diretor tem a capacidade de enxergar os espaços vazios, a imagem enxuta de elementos físicos, porém valiosa de significados.

O início do filme é a própria produção do filme. Conforme os personagens são apresentados, a imagem em preto e branco, as cenas cortadas bruscamente, os enquadramentos fechados e os longos planos-sequências nos remetem aos primórdios do cinema, em que o diretor nos dá a primeira dica de que se trata de uma sensível reflexão sobre o cinema.

Além da parte criativa do diretor, a direção de atores feita pelo próprio busca também uma inovação. A atuação pretende-se não espontânea, não natural, geralmente de um jeito não encontrado no cinema tradicional. Para o cineasta há a intenção do texto representado sob os parâmetros do teatro clássico.

Outro fator marcante neste filme de Bressane é o modo como se inverte o olhar na criação. A câmera se vira de frente para a própria linguagem cinematográfica, como se o filme fosse sobre a imagem do cinema. Dentro desse aspecto o diretor ainda cria um jogo de paradoxos entre o cinema e o tema, entre o tema e seus desdobramentos e entre o cinema e seus questionamentos. Tudo isso acontece através da desconstrução da linguagem, realizada com originalidade e maestria por Bressane.

A trilha sonora de Guilherme Vaz, a montagem de Virginia Flores e a produção de Tarcísio Vidigal completam uma equipe de primeira linha e que respondem e contribuem maravilhosamente para o estilo irreverente e atrevido de Bressane em “Filme de Amor”, uma obra que não é auto-biográfica mas expõe seu criador com todas as suas concepções, divagações e indagações sobre o que é a arte e o cinema para ele.


Cuidem-se.

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